domingo, 27 de outubro de 2013
Uma lenda africana
Uma lenda africana
Esta história começa lá nos confins da África, onde um dia nasceu um belo príncipe, herdeiro e esperança de seu povo.
Mugundo, este era seu nome e carregava consigo, além deste, a fé dos seus compatriotas de que a vida em seu país seria diferente.
O menino nasce e, como previam os oráculos, realmente o destino de seu povo começa a mudar. A partir daí vive-se uma época de grande prosperidade, seu povo enriquece, o que é extremamente vantajoso para o rei, já que seu povo enriquecendo, o aumento de sua riqueza viria em consequência.
Como nada na vida é eterno, com o passar dos anos esta história começa a mudar. Um dia, numa guerra entre as tribos, o clã de Mugundo é derrotado, sua família é destroçada e o príncipe é vendido como escravo, como era costume entre os derrotados e trazido para o Brasil, que na época era colônia de Portugal como mão de obra para trabalhos braçais. Mais do que a dor de haver perdido todos aqueles que lhe eram caros, doía-lhe mais saber que havia perdido seu bem mais precioso: a liberdade.
Mugundo chega ao Brasil e, como tradição em nossas terras, recebe um batismo e nome cristão, Severino, um nome que traduz bem o que seria sua vida dali em diante.
Ele chega para trabalhar na fazenda de um terrível senhor de engenho, o qual tinha suas maldades conhecidas em toda a região, amado por uns, temido por muitos, sua palavra era a lei naquelas paragens e será neste cenário que Mugundo, agora, Severino irá viver um verdadeiro inferno.
Severino aceita seu destino sem revolta, mas carrega consigo o sonho de um dia poder reconquistar a liberdade perdida.
Faz de tudo para não desagradar o seu senhor e para servir de exemplo para tantos companheiros que encontravam-se na mesma situação, sempre oferecendo um ombro amigo, uma palavra de consolo e esperança.
Porém tudo isso não será suficiente para que Severino deixe de provar sua dose de sofrimento, a dor da chibata, a fome, que o faziam perder o sono e quase o juízo, nada disso pra ele importava, pois carregava consigo a certeza de que seria livre novamente um dia.
Um dia, após muitos anos de sofrimento, novamente sua vida começa a mudar: o terrível senhor de escravos, perde sua fortuna e vê-se obrigado a se livrar de seus bens e com isso então, Severino é vendido para outro fazendeiro e mandado para uma fazenda maior do que aquela em que trabalhava. Abatido, mas não desesperançado ele chega ao lugar e como havia acontecido antes, segue como exemplo de trabalho e esperança.
O tempo passa e Severino sempre ali trabalhando, sendo amigo, companheiro e querido por seus companheiros e também pelo seu senhor que, a cada dia mais admirava a postura digna daquele escravo. É nesta época também que ele conhece o amor, apaixona-se e casa-se com uma bela escrava que há muito vinha acompanhando seus passos.
Passados alguns anos em que estava ali, um dia, o seu senhor o chama para uma conversa, quer saber um pouco mais sobre ele, sobre sua vida.
Severino chega, de cabeça baixa, olhos na direção do chão e surpreende-se quando o senhor lhe faz a seguinte pergunta:
- Qual é seu nome?
Admirado o escravo responde, achando que seu senhor estava enlouquecendo:
- Severino, senhor!
Novamente seu senhor o interpela:
- Não, Severino foi o nome que te deram aqui em meu país. Quero saber o nome que recebeu em suas terras, aquele que seus pais escolheram para você quando nasceu. Fale-me um pouco sobre você.
Severino então, sem entender muito bem onde seu senhor queria chegar, mas emocionado por relembrar sua origem lhe responde:
- Nasci lá nos confins da África, em meio às planícies mais verdes e belas que o senhor poderia imaginar, meu nome era Mugundo, eu era filho do grande rei daquelas terras, mas perdi tudo, inclusive minha família, depois de uma guerra e fui mandado para este país para servir como escravo para seu povo.
Seu senhor admirado lhe responde então:
Chamei-te aqui Mugundo, porque te observei todos estes anos, sua postura digna, suas palavras de consolo para seus companheiros e achei que era a hora de te dar um presente.
Desta vez quem se admira é Mugundo:
- Presente, senhor?
- Sim, um presente, mas aposto que você não saberia o que é.
-Realmente, meu senhor.
- O presente que te dou agora, meu príncipe, é esta carta, nela está a garantia da liberdade, sua, de sua mulher e dos filhos que vierem a ter. A partir de hoje você é livre para fazer o que quiser, inclusive voltar a seu país. Dou-te ainda este dinheiro para usar caso queira fazer isso, ou para garantir suas primeiras necessidades.
O ex escravo, agora novamente príncipe, sem saber direito o que fazer ou dizer abraça seu senhor e não consegue dizer nada, devido às lagrimas que não deixam de cair dos seus olhos.
Vai então para casa contar a novidade para sua esposa.
- Maria, arruma tuas coisas que vamos embora daqui!
A mulher acha que o marido enlouqueceu e ele novamente lhe fala:
- É verdade, olha aqui, esta carta diz isso, a partir de hoje estamos livres, podemos ir aonde quisermos como quisermos e ninguém irá nos impedir, nosso sonho finalmente se realizou.
Não cabendo em si de felicidade sua esposa o abraça, choram juntos e planejam o que fariam dali pra frente, onde iriam morar, seu futuro, que prometia ser maravilhoso.
Passado algum tempo, depois de tudo isso, Mugundo começa a agir de maneira estranha. Talvez por sentir-se sem rumo, afinal, foram tantos anos de escravidão e sofrimento que agora não sabia o que fazer com tanta felicidade.
O fato é que Mugundo, agora já com um emprego, ganhando seu próprio dinheiro, um dia retorna a fazenda daquele senhor que lhe deu o seu presente e, voluntariamente, vai até a senzala, onde acorrenta seus pés e dorme na sua velha cama de pau.
Esse ritual repete-se todas as noites., Durante o dia Mugundo trabalha pra garantir seu sustento e o da família e à noite retorna à fazenda pra dormir na senzala como havia acontecido todos aqueles anos.
Seu antigo senhor não entende sua atitude e um dia lhe chama pra conversar:
Mugundo, por que está fazendo isso?
Não sei dizer meu senhor, o fato é que depois que saí daqui, apesar de toda felicidade, senti-me vazio, sem saber o que fazer e percebi que só voltando, este vazio era preenchido.
Apesar da tristeza, o senhor aceita a situação e também a presença daquele escravo, todas as noites em sua fazenda.
Passa-se o tempo, sua esposa também não entende direito a situação, mas conforma-se e vê, resignada, seu marido, todas as noites, fazer o mesmo caminho, da sua casa até a fazenda.
Aceita também o fato de Mugundo ter enlouquecido e toma uma difícil e necessária decisão:
- Mugundo, se passar as noites na fazenda te faz feliz, eu aceito, não vou mais interferir na sua decisão. Apesar de te amar, aceito o fato de que você é mais feliz lá na senzala, não vou te abandonar, mas sinto que nosso destino não é mais estarmos juntos, segue sua vida que eu vou seguir a minha.
Esta é a última conversa do casal, depois disso nunca mais se falou. Novamente o tempo passa, seu senhor morre, seus companheiros, alguns de idade, outros de doença também se vão e Mugundo desta vez, definitivamente sozinho, continuou seu ritual, até o dia em que o Grande Senhor, por compaixão e justiça resolveu finalmente, desta vez de maneira definitiva, libertá-lo para ser feliz.
Observação: Esta história não é uma fábula, mas penso que tem uma grande moral: será que sabemos lidar com a nossa liberdade? Conseguimos identificar o momento em que as amarras são cortadas? Ou será que muitas vezes ainda que inconscientemente procuramos por elas até enlouquecermos? Quantas vezes não pensamos e agimos como o príncipe Mugundo? Será que neste momento não fazemos isso? Era este o questionamento que pretendia trazer quando pensei nesta lenda.
Ana Paula dos Santos
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